Livros #1 - Duas línguas, de Laura Cohen
Ainda que a vontade fosse de sentar na rede e só levantar quando o livro tivesse acabado, a vida se impôs e tive que interromper a leitura quatro ou cinco vezes.
"Que o público fosse para casa com aquilo, extenuado, os afetos limpos, que ele mesmo pudesse descansar depois de todo esse impacto". (p. 146)
Peguei uma frase da Roberta Iannamico pra mim pro resto da vida, assim espero. Aquela coisa de sair procurando a caneta já é começar a escrever. Peguei essa frase também pra leitura. Sair procurando a cor da caneta perfeita para grifar o livro, ainda que por vezes eu não grife, já é começar a ler. Aconteceu isso com o livro Duas línguas, da Laura Cohen Rabelo, e ainda bem que escolhi logo a caneta porque a leitura foi rápida como há muito tempo não era pra mim. Talvez isso se deva ao fato do livro ter apenas um único parágrafo, algo que marca sua forma intensamente, já que aquele primeiro fôlego parece precisar se renovar a cada ponto que Laura escolhe colocar nas frases. O parágrafo único em um livro de 172 páginas nos faz ler além do que estávamos planejando em um dia, você vai indo, vai indo, achei realmente um golpe de mestra. Mas, ao mesmo tempo, algo que me peguei pensando enquanto lia foi a importância de escolher onde fazer as pausas de respiro na leitura. Ainda que a vontade fosse de sentar na rede e só levantar quando o livro tivesse acabado, a vida se impôs e tive que interromper a leitura quatro ou cinco vezes. Duas pela hora de dormir, duas pela necessidade de ir à rua, uma pela hora do café. Foram três dias de leitura, cinco pausas. Essa coisa de um parágrafo só me fez ter de calcular onde o texto me dava liberdade pra ser interrompido. Percebi que a maioria das vezes eu esperava a cachorra aparecer, como esse elemento externo que lembra B., esse personagem que é um Si e um acorde de si, de que há um mundo vivo ao redor, acontecendo em tempo real. Eu também fui despertada pela cachorra, pela máquina de lavar, pela cafeteira, pelo pé da mulher para fora da coberta, pelo tanto que também me interrompeu durante a leitura. Duas línguas se inscreveu no meu dia a dia e por vezes eu me sentia B, por vezes eu me sentia a mulher de B, tradutora com seus livros empilhados e espalhados pela casa, mas não cheguei a me sentir Martin.
Duas línguas é um romance que conta a história de B, um violonista brasileiro que se depara com um porta-retrato com uma fotografia sua quando tinha vinte e poucos anos. B, na situação da foto, está em Londres, de frente a uma porta vermelha e sabe quem o fotografou. Lembra de Sandra por trás da câmera, mas se pergunta sobre Martin, sente falta dele na foto. Martin, esse amigo que se impõe na lembrança durante toda a narrativa. Enquanto B desperta e vive horas de solidão acompanhado da cachorra, em sua cabeça tudo acontece. Ele se lembra de Sandra, de Londres, de Mimi, de Tubarão (um dos meus personagens favoritos), da escola de música, da tia. B se lembra do clima dos lugares, de sua temperatura, de sua umidade, B sente cheiros, escuta acordes, sente na pele de novo tudo acontecendo, mas sua visão falha. Ele não consegue se lembrar do rosto de Martin e nem do caminho de casa. É como se B estivesse disposto a todos os sentidos, menos a visão, como se a visão reduzisse sua lembrança. O império da visão na se cria com B, foi o que pensei enquanto lia.
Enquanto lia também me acompanhava aquela deliciosa sensação de quem lê um romance de formação: quem nunca? Quem nunca esteve naqueles lugares como B esteve? Submisso, tímido, inquieto, duvidoso, curioso. Aos 19 anos tudo é imenso e apavorante. Ao mesmo tempo em que B é tomado por uma coragem inacreditável de encarar seu destino como violonista, apesar de classe média trabalhadora, ele é também tomado por um medo inacreditável de tudo o que se coloca em sua frente. Enquanto acorda, vai à padaria com a cachorra, volta, passa o café e prepara a máquina de lavar roupas, B se lembra de si mesmo, como esse acorde em Si, o último acorde da escala das notas musicais (que agora descubro virem de um hino a São João, "SOLta-me a língua, LAva-me a culpa, São João"), como se esse último acorde fosse a última nota que resta dessa história. As mortes, as distâncias, o Google que não dá conta do paradeiro das pessoas, então o que resta é lembrar naquelas poucas horas de jet lag e silêncio.
Com muita generosidade, Laura constrói B como um homem que falha e que sabe que falha. A constante de conquistar sempre o segundo lugar nos concursos nos garante que naquela história B se dará a liberdade de falhar. E a memória dele falha, os rostos se perdem, os acontecimentos se misturam e sem a menor necessidade de compromisso com a cronologia dos fatos, Laura Cohen nos entrega um B confuso e interrompido. Esse é o único B que seria capaz de lembrar, se fosse apolíneo como Martin o acusa em determinado momento, ele seria incapaz de acumular as memórias de maneira tão emotiva e desordenada. Nas tentativas de recuperar um rosto, ele se lembra dos únicos rostos que objetivamente ficaram gravados em sua mente: o rosto dos músicos canônicos e dos professores. A guia de B é o método, o passo a passo, mas quem guia sua memória é a virtuose, da qual ele tenta miseravelmente escapar e não escapa. Como quem toca de ouvido, B faz suas digressões que são narradas por uma narradora que adentra suas memórias e falha com B. São partitura e execução, B e a narradora.
É impossível não se jogar nas próprias memórias enquanto a narradora generosa nos entrega as memórias enoveladas de B. Aos poucos fui me lembrando de uma paixão platônica que tem voltado à minha memória constantemente nestes últimos tempos. Às vezes bate uma nostalgia daquela linguagem intensa e dedicada. Mas isso traz consigo um problema: uma linguagem que se promete honesta e sincera, mas que oculta o que há de mais intenso: a própria paixão. Tudo é dito, até mesmo os piores impropérios, mas a paixão ressoa incomodamente, como uma rame ao fundo, um barulho insistente e repetitivo com o qual a gente se acostuma, mas que tá sempre ali a ser lembrado e, na imediata sequência, abafado. B e Martin constroem uma relação onde esse som acompanha os dois em sua covardia do não dizer. Eles apelam à música e aos quartos para viver aquilo que mais ninguém vai saber. Sandra saberia? Mas ela desapareceu. Conforme B adentrava em seus próprios pensamentos sobre Martin, entrelaçados aos apelos da cachorra, eu também adentrava em meus próprios pensamentos sobre “meu Martin”, entrelaçados pela pressa do dia. Ler Duas línguas me trouxe uma pequena paz desesperada, se é que isso é possível, de que as histórias mal resolvidas talvez sejam só isso mesmo, histórias mal resolvidas. Talvez resolver essas histórias não esteja no campo do possível e encontrar o rosto que se esqueceu representado por uma fotografia séria e burocrática seja tudo o que nos resta.
Mas B, esse Si, não é apenas esse homem em busca de Martin, ele é um homem em busca de si. Com o distanciamento necessário, que só pode ser desfeito pelas fotos antigas, B reflete sobre sua carreira, sobre sua sexualidade, sobre sua família, sobre os abusos que sofreu, sobre o quanto caminhou e sobre como ainda caminha. Em especial me tocou muito quando B reflete sobre a importância dos passos até a cadeira onde irá se sentar para tocar seu violão, esse companheiro constante durante todo o livro. Ele faz o mesmo movimento com o qual comecei esse texto, a frase de Roberta Iannamico, procurar uma caneta já é começar a escrever ou ler. Para B, procurar os passos pelo palco já é começar a tocar o violão. Para Laura, sair para caminhar com a cachorra já é começar a procurar a foto de Martin. A literatura dá conta do que a memória muitas vezes não dá e um romance de formação pode sim ser só uma memória.

PS: Eu queria tanto falar sobre a mulher tradutora, mas talvez eu não alcance ainda a beleza dela nesse livro, com seu pé descoberto e suas rotinas que aterram B. O que consigo aqui, é deixar no meio do texto, uma das pilhas de livros espalhadas nessa minha casa que também é a casa de uma mulher tradutora e escritora. Ainda que me identifique muito com B, são os livros que compõem essa desordem que me tiram da sequência apolínea dos dias.
Se você se animou a ler o Duas línguas, ele está à venda no site da Editora Zain, essa editora muito bacana que se diz “música em forma de livro”. São livros sobre e com música, livros atravessados por esse tema. É uma casa bem linda para um livro de uma escritora tão dedicada à música quanto é a Laura Cohen Rabelo. Tenho sempre a impressão de que saio um pouco mais inteligente musicalmente falando quando leio a Laura. E que sorte é ter Laura por perto, como amiga e conselheira, e companheira com seu lindo Estratégias Narrativas, que se você não conhece, devia conhecer agora.
Por último eu queria dizer que há muitas romancistas incríveis espalhadas pelo Brasil. Romancistas com os mais variados temas e formas de escrita. Precisamos ler nossas romancistas, dar a elas o lugar de destaque que merecem. São pessoas que trabalham a língua com cuidado e carinho e, só por isso, já merecem muito a nossa atenção.
Preciso procurar uma caneta para gritar esse texto!