A porteira
Se penso nas porteiras, chego a ouvir o ranger da madeira velha, cheia de fungos e pregos enferrujados
Igreja de Santo Antônio da Estiva, 13 de junho de todos os anos
Cresci ouvindo algumas canções serem repetidas nas violas pela cidade e talvez tenha sido em uma delas que me dei conta da importância e da presença das porteiras nas estradas das cidades do interior. A música, no caso, era "O menino da porteira", cantada por Luizinho e Limeira, que invadia as tardes de inverno, as festas de gado leiteiro, as quermesses de Santo Antônio. Muitas vezes a música tocou até que eu me atentasse para qualquer coisa além do ritmo e do título, afinal de contas, com aquele ritmo, o menino da porteira poderia ser qualquer menino da minha escola, da minha cidade. As letras das músicas rancheiras, sertanejas, das modas de viola, contam histórias que viajam pelo caminho dos peões errantes, são narrativas que fazem crescer em mim e nos meus a necessidade de narrar. Ainda que nossas viagens sejam só entre um povoado e outro, há sempre o que se narrar.
Dou play na música, agora, em 2022, para tentar entender melhor o sentido que uma porteira pode ter nas minhas caminhadas. De primeira, se penso nas porteiras, chego a ouvir o ranger da madeira velha, cheia de fungos e pregos enferrujados, às vezes uma ferradura ou crânio de boi pendurados. Presto atenção nos versos da música e entendo melhor o que há de um lado para o outro, quando se cruza a porteira. A letra de Teddy Vieira e Luis Raimundo relata a dor da ausência das figuras que se penduram nas porteiras, os meninos sem nome esperando os que viajam perdidos pelas estradas do interior. "A cruzinha no estradão do pensamento não sai" me faz pensar nas encruzilhadas, o cruzar das porteiras e das estradas, as ausências e presenças, as escolhas e as faltas, o que há de triste e assustador quando cruzamos caminhos.
Em quase todos meus passeios por trilhas na minha cidade, cruzei com uma porteira, mesmo naquele passeio dantesco em que me deparei com uma vaca. Pelo olhar do caminhante, não importa para qual lado está a propriedade, importa mais entender o que pede cada porteira: se está aberta, apenas atravessar; se está fechada, abrir ou pedir que alguém a abra; se está trancada, pular por cima ou se arrastar por baixo. Se no meio do caminho, em uma trilha no meio do mato no interior, encontramos com uma porteira, a única saída é olhar para ela, entender sua presença e sua ausência. Abraçar o desconhecido e então cruzá-la.
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Quando escrevi minha dissertação, tinha real medo de não saber escrever do jeito que esperavam. Uma das maneiras de me tranquilizar era começar um capítulo com uma pequena divagação sobre os temas que eu iria tratar naquele momento. Como a dissertação era um diário de tradução, eu lia os versos que estava analisando e traduzindo e deixava que eles assentassem em mim durante uns dias. Ao longo das horas, iam surgindo histórias antigas que acalmavam meu coração e me faziam entender que eu sabia sim alguma coisa sobre aquele tema, academicamente ou não. Este texto que compartilho hoje foi escrito nesse processo e faz parte da minha dissertação. Ele fala sobre a porteira presente no poema Dantesco de Roberta Iannamico. Aquela porteira me lembrava de outras porteiras e então eu escrevi.
Depois da defesa pensei que não queria que esses fragmentos ficassem restritos a essa conversa da dissertação e agora penso que talvez eles façam parte de algo que está por aí, andando pela minha cabeça. Quem sabe uma hora vem.